A narrativa, ou melhor dizendo, o ato de contar histórias, é de longe uma das tradições culturais mais antigas e interessantes da história da humanidade; sem ela, não teríamos a honra de grandes contos mitológicos, lendas urbanas e grandes ícones da cultura pop, sendo Drácula de Bram Stoker o grande ícone que me vem à mente. As histórias, sejam elas reais, explicações místicas de fenômenos que não pudemos compreender ou até mesmo meras alegorias para criar bom senso em crianças, foram fundamentos essenciais para a construção das grandes civilizações, e eu honestamente não duvido que até certo ponto de nosso desenvolvimento, os contadores de histórias poderiam ser considerados sábios ou até mesmo profetas.
Nos dias do nosso século XXI, contar histórias tomou um caráter muito mais focado no entretenimento; onde temos jogos, livros e quadrinhos, sobre o mundo fantástico que existe em nossas mentes, e que vivemos em nossos corações.
Mas sabe, apesar de amarmos ouvir histórias do passado e jogar/ler estórias fantásticas, sejam elas pelo seu contexto impactante e apagado pelos livros da escola, como podemos ver sobre os conflitos políticos moçambicanos em O mapeador de Ausências de Mia Couto; sejam elas pelo seu teor fantástico como em Wicked like a Wildfire de Lana Popović, ou até mesmo pela precisão de palavras e descrições macabras de muitas obras de Edgar Allan Poe, como por exemplo O Baile da Máscara da Morte Vermelha, um favorito particular; não podemos afirmar que todos esses livros em nossas estantes são incríveis apenas por seu mundo criado. Afinal, para que algo seja contado, alguém ou algo precisa nos contar, e para que algo seja vivido, alguém ou algo precisa viver.
Nós, como espécie humana, somos criaturas egocêntricas (não me leve a mal, você vai entender, também podemos dizer de certa forma que somos criaturas empáticas), isto é, nos espelhamos em algo que podemos nos considerar um semelhante e vivemos uma parcela de suas experiências em uma história. Então, por mais interessante que seja ler jornal, a gente se simpatiza muito mais com um romance policial como os de Sir. Arthur Conan Doyle, por que sentimos a adrenalina da investigação, ficamos incrédulos com as deduções de Sherlock junto de Watson. Nós não somos apenas contadores ou apreciadores de histórias, nós facilmente nos tornamos parte dela.
E agora, mais do que nunca, precisamos de personagens aos quais nós sintamos sua realidade, e para isso nós não precisamos apenas de um bom mundo ou trama: precisamos de bons personagens, já que é como eu disse, eles são a alma do que é contado.
A seguir, compartilharei o que sei sobre character design em narrativas, de acordo com minhas experiências como alguém que ama contar histórias, assim como vocês.
1. Origem
Quando comecei a pensar sobre como gostaria que seguisse meu raciocínio, consegui definir a forma que criamos de duas formas: digamos que toda ideia que você tem, carrega consigo um passaporte. Algumas ideias terão o visto, algumas não exatamente. Essas idéias sem visto seria a famosa inspiração, que pode vir em forma de alguma cena, algum writing prompt ou até mesmo uma simples frase, cor ou nome. Sim, nem um pouco criterioso, desse jeito mesmo; já as que têm “o visto”, são idéias que você, autor, precisou que viesse até você.
É importante ressaltar que não tem uma forma melhor de criar um personagem ou conceder uma ideia. Não importa de onde sua ideia veio, mas sim o que você será capaz de fazer com ela.
Se você viu o vídeo O que o BBB ensina sobre criação de personagens do quadro Auautoral no nosso canal do Youtube, você deve ter sido introduzido aos arquétipos Junguianos, caso não conheça, os arquétipos de Jung são papéis desempenhados por diversas pessoas ao longo de sua vida; trazendo consigo conhecimentos do inconsciente coletivo ao longo de sua vida.
Jung acreditava que nós nascemos com um inconsciente coletivo, como a nuvem de arquivos da internet, onde todos compartilham dos mesmos conhecimentos, mas não temos acesso direto à essa informação, nem podemos conversar por esse inconsciente. Ainda assim, somos capazes de reconhecer algumas ideias; essas ideias foram estudadas entre diversas culturas (incluindo tarot, olha só) e assim se estabeleceu os Arquétipos.
É uma mecânica muito boa no storytelling, ajuda muito a criar funções e trilhas para seus personagens. Pense nessa estratégia como uma leitura de tarot: o tarot vai apenas apresentar o que você já fez, seus atos conscientes ou inconscientes; e mostrará possíveis resultados de acordo com suas atitudes, nada mais.
Acho que bons exemplos de aplicação destes arquétipos pode ser encontrado no Kung Fu Panda: sendo Po o Herói, no tarot, o tolo, aquele que começa a história de forma descuidada; Mestre Shifu como o Sábio, no Tarot poderia ser o Imperador, a primeira figura forte masculina na sua jornada arcana; e Mestre Oogway poderia ser o Criador para Jung, e a carta O Mundo para o Tarot, por ser a etapa final de sua introspecção, o sentimento de preenchimento de si por si.
Perceba em outras histórias que você consome, padrões destes arquétipos; isso pode te ajudar a exercitar a não deixar personagens soltos em seu mundo, afinal, todos nós vagamos aqui por alguma razão, apenas não precisamos saber dela; mas como contador de história, é bom que essa noção exista 😀
2. O mundo
O que vem antes, o mundo ou o personagem? Por mais divertido que seja a pergunta, é importante manter uma coisa em mente: O ovo veio sim antes da Galinha; isso não apenas falando que sim, um dia um dinossauro pode muito bem ter botado um ovo de galinha, mas também que é nossa percepção existencial: na mitologia cristã, Deus criou o mundo em 7 dias, 6 de puro trabalho místico de tempo indeterminado e o 7º dia de need a kitkat; na mitologia nórdica se relata que o universo foi criado a partir dos destroços de Ymir, uma criatura irracional e primitiva, que foi visto como má e por isso destroçada pelos filhos dos deus Buri, cujo pai foi libertado do gelo do abismo de Ginnungagap por uma lambida de vaca (Audhumla). Tudo isso me levou a pensar o quão bom seria criar um mundo para que meu personagem conseguisse ter um melhor papel na história, mesmo que a história possa não estar definida ainda.
É como sempre me disseram, quando for fazer o psicotécnico para a CNH, nunca se esqueça do chão dos desenhos. Afinal, não tem como uma casa ficar flutuando por aí, a não ser que tenha milhares de balões presos pela chaminé.
Falando nisso, tá aí um bom mundo para se citar: o mundo de Up! Altas Aventuras. Um mundo onde ao que se dá a entender, a América do Sul não tinha sido ainda desbravada, e histórias de aventureiros pelas terras desconhecidas preenchiam os sonhos de um jovem casal que sonha viajar e descobrir o mundo nos anos 50-60. Perceba como esse mundo não é algo tão distante de um ponto de vista da época; realmente, para os estadunidenses a América do Sul era basicamente mato amazônico naquela época, mas a fantasia, a hipótese de um sonho na mente do rabugento Sr.Fredericksen fez com que essa trama se desdobrasse de forma totalmente sonhadora e agradável.
3. Não é que não podemos julgar um livro pela capa, que deixamos de fazê-lo.
E infelizmente (ou felizmente?) É verdade, todos nós julgamos e criamos preconceitos sobre assuntos, lugares e pessoas. E sabe, não veria isso como algo tão ruim se fosse você, afinal, contar histórias pode ensinar coisas, não? E trabalhar com estereótipos pode vir a ser algo interessante sim, mas é uma questão de você usar com moderação, para não criar uma obra que dê gosto ruim na boca de quem lê.
Por esse tópico ser muito subjetivo, vou citar uma aplicação desse uso bom de estereótipos nas mídias que me vem à mente: Um bom começo seria lembrar de Enrolados, a releitura de Rapunzel da Disney. A cena da taverna onde é cantada uma das minhas músicas favoritas originais de animação: na música Um Sonho Eu Tenho é exposto pelos “malvadões” que sim, eles sabem da reputação que sua aparência e passado trazem, mas deixam bem claro que mesmo assim, não se resumem a isso.
Caso você queira trabalhar com algum grupo ao qual você não pertence/não tem contato, e quer fazer algo que de fato esses grupos se identifique, considere ouvir o Podcast Sala 1604 #214 - “Como fugir de estereótipos?”, neste episódio é discutido como trazer minorias para sua história sem que fique algo tosco ou mais um clichê; Limão com Vodka e Paloma conversam sobre isso de forma muito livre e sincera, deixando ótimas recomendações e conselhos para quem quiser ouvir 🙂
4. Comportamento e relações
Considero a parte mais importante do personagem na narrativa, e definitivamente a mais difícil. Uma frase fora do que seu personagem apresenta para o leitor e os outros personagens, e tudo morre. Mentira não é para tanto, mas você pegou a ideia.
Saber de forma quase que regrada as formas que os personagens falam, se movem e se relacionam entre si é a melhor forma de manter coerência num diálogo. Pense como seria se Kratos em God of War 4, falasse da mesma forma bruta, violenta e espartana que nos outros três, iria quebrar muito o trilho da história, não acha? Vê-lo controlando a raiva, sendo uma figura paterna forte, apesar de distante, trouxe muita empatia dos jogadores à história. Ele tinha sua função, um mundo, arquétipos o acompanhando e além do comportamento, ele teve a coisa mais importante para um bom personagem: Evolução.
Eu tenho a mania de dizer que as pessoas não querem histórias épicas, elas querem histórias bem contadas, sejam elas no mundo de Horizon: Zero Dawn, sejam elas na Rua do Limoeiro. Se a escrita precisa de Poe consegue trazer a paranoia de uma ficção de horror para sua mente, também conseguimos trazer a emoção e engajamento com relacionamentos arquetípicos (como por exemplo você falando para sue irme que você e seus pais e acharam no lixo entre outras coisas, ou a brincadeira de ficar pulando de sofá em sofá porque o chão é de lava e por aí vai) porque não estaremos apenas usufruindo do poder da mente humana, mas também estaremos fazendo o bom e velho apelo emocional.
A caminhada em direção de seu estilo de escrita mais apropriado é longo, e provavelmente interminável, nunca deixe de estudar, escrever, desenhar (caso desenhe) e consumir livros, filmes e séries do que te agrada ;D
Espero ter ajudado na sua odisséia em busca de terminar suas histórias. Ao fim do artigo, terá links dos livros citados, da minha leitura complementar para conseguir sintetizar todas minhas ideias e dos vídeos do canal do Youtube da Revolution.
E hey, não desista. Nunca. Pode parecer difícil mas vai passar.
Tome seu tempo, mas não se esqueça:
Links e Referências:
- Drácula - TEDTalk
- O Mapeador de ausências de Mia Couto. TAG Livros
- Wicked like a Wildfire de Lana Popović - Amazon
- O baile da Máscara da Morte Vermelha de Edgar Allan Poe - Amazon
- O que o BBB ensina sobre criação de personagens do quadro Auautoral
- Arquétipos Jungianos
- Origem do Universo - Mitologia Nórdica
- Um sonho eu Tenho - Enrolados
- Podcast Sala 1604 #214 - “Como fugir de estereótipos?”
- How to design a compelling character that tells a story
- How to Develop a Fictional Character: 6 Tips for Writing Great Characters - Masterclass
A arte em destaque nessa matéria é do artista Richard Luong, que é consept artist e trabalha principalmente com criaturas monstruosas. Você pode conhecer mais do trabalho dele no seu ArtStation ou no seu Instagram!